Não faço o bem que quero, mas o mal que não quero.
Cada um de nós já sentiu uma espécie de conflito interior, como um cabo de guerra dentro de nós entre duas vontades: uma que entende o que deve fazer mesmo que não o deseje, outra atraída por aquilo que sabe que não deve fazer.
Não é estranho que desejemos com tanta força coisas que sabemos que vão nos fazer mal? Não seria muito mais fácil se desejássemos só aquilo que é bom, honesto, saudável?
A pior parte é que, um número de vezes maior do que gostaríamos de admitir, nosso “lado monstruoso” vence e fazemos o mal que não queremos.
O resultado imediato após essa queda é um desagradável sentimento de culpa.
Você já se sentiu assim?
Quero estudar com você esse fenômeno e tentar explicar por que ele acontece.
Para tornar o mais fácil possível de entender, vou recorrer à ajuda de uma das mais conhecidas obras da Literatura que é a encarnação perfeita desse conflito.

O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde
Talvez você já tenha ouvido falar dessa obra sob o título de “O Médico e o Monstro”, ou mesmo nunca tenha ouvido falar dela diretamente. Muito provavelmente, no entanto, você já assistiu a alguma mídia que imita ou reproduz essa história de forma adaptada.
A história do médico ou cientista que inventa uma poção ou experimento e, por causa dele, passa a se transformar em uma segunda persona de caráter monstruoso é bastante conhecida na cultura popular.
Caso ainda não tenha identificado, um dos imitadores mais famosos da história do Dr. Jekyll é ninguém menos do que o Dr. Bruce Banner, mais conhecido como o Incrível Hulk.
O próprio Mr. Hyde já apareceu em filmes mais atuais, como foi o caso da Liga Extraordinária (2003) ou Van Helsing (2004).
A história original, escrita por Robert L. Stevenson, é, na verdade, bem curta, sendo pouco mais que um conto.
Trata-se da narrativa sobre um respeitado médico inglês que, em determinado ponto da vida, já muito bem-sucedido em sua carreira e querido por um honrado círculo de amigos, começa a se relacionar com um tal de Mr. Hyde, de quem nenhum dos amigos havia ouvido falar.
Seus companheiros começam a suspeitar que o bom doutor esteja sendo alvo de um perigoso esquema de suborno e mesmo suspeitam que o tal Mr. Hyde tenha reais intenções de dar cabo à vida do amigo.
As coisas ficam cada vez mais sinistras quando acontece o pior: Mr. Hyde é flagrado cometendo um violento assassinato; não o assassinato do Dr. Jekyll, mas, de qualquer forma, o ocorrido faz com que seus amigos temam ainda mais urgentemente por sua vida.
Eles pressionam mais intensamente a investigação e acabam por descobrir o segredo sinistro que Jekyll havia guardado deles até então.
A partir desse ponto vou revelar partes da história mais detalhadamente. Portanto, se deseja evitar saber dos pontos antes de ter lido, recomendo que adquira a obra por esse link, leia, e retorne para terminar a explicação.
Robert L. Stevenson – Sobre o Autor

Autor consagrado por sua obra mais famosa, A Ilha do Tesouro, Stevenson foi introduzido no hall dos escritores de Terror Gótico graças à obra que agora estudamos.
Esse gênero literário, o Terror Gótico, é muito diferente do tipo de terror que encontramos hoje em dia. Tinha como objetivo mostrar aspectos sinistros da natureza humana, como o vício e o pecado, sob a máscara de monstros e criaturas das trevas.
No terror gótico, o Mal é realmente mau e a intenção é justamente gerar sentimentos de nojo ou medo com relação a ele.
Stevenson consegue realizar isso maravilhosamente em “O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde”.
É justo mencionar também que o autor escreveu a obra durante a Era Vitoriana na Inglaterra, época em que a moralidade era extremamente apreciada e, ao mesmo tempo, vidas viciosas eram muitas vezes escondidas em fachadas de moralidade.
Stevenson explora nessa obra a divisão interna entre o vício e a virtude no homem, bem como os efeitos inevitáveis de uma vida de vício, mesmo oculta por uma aparência de virtude.
Vejamos agora como isso acontece na obra e que lições podemos tirar dela.
“Em cada homem não existe um, mas dois homens” Dr. Jekyll

Essa afirmação, feita pelo doutor em sua confissão ao final da obra, é dita em um tom de descoberta científica inovadora. Não poderia, no entanto, ser um conhecimento mais antigo, sendo conhecido literalmente desde o começo dos tempos.
Dr. Jekyll se refere a esses dois homens como sendo forças opostas: um é ordenado e benévolo, voltado para os amigos e para o serviço. O outro é egoísta e mesquinho, abonando seus impulsos mais baixos a despeito do bem dos demais.
O que o doutor está descrevendo nada mais é do que a desordem existente na alma humana, a qual chamamos de Pecado Original.
Quando um ser humano está ordenado, como éramos no princípio, tudo o que ele é contribui para sua realização máxima. Sua inteligência lhe mostra a verdade, sua Vontade escolhe facilmente pelo bem real, seus afetos lhe impulsionam para esse mesmo bem e seus instintos pedem precisamente o que é conveniente.
Ou seja, o ser humano ordenado é uno, íntegro.
Acontece que, a partir do Pecado Original, houve uma cisão na alma humana. Seu espírito continuou a pedir, mesmo que enfraquecido, pela verdade e pelo bem, mas seus apetites mais baixos ficaram tresloucados e sem medida.
Dessa cisão é que vem esse “cabo-de-guerra” que frequentemente sentimos. Nossa parte mais espiritual ainda nos revela o que de fato seria o melhor, mas nossos apetites nos empurram para o excesso e para a desordem.
Dito isso, existe um problema: nossa parte espiritual nasce fraca e turva, precisando de esforço e treinamento para se fortalecer e crescer.
Nossa parte sensível, por outro lado, já nasce extremamente forte. Precisamos, ao contrário, de esforço e treinamento para mantê-la sob controle.
Isso faz com que, na maior parte dos casos, nossa parte “monstruosa” seja mais forte que a parte ordenada, fazendo com que “façamos o mal que não queremos e não o bem que queremos”.
“Para mim, no meu manto impenetrável, a segurança era completa.”

No caso do Dr. Jekyll, ele ainda estava em uma posição melhor do que muitos de nós, a princípio. Sua parte ordenada era maior (até fisicamente) e mais forte que sua parte “monstruosa”.
No entanto, o doutor caiu em uma tentação muito antiga: a de viver os impulsos e desejos do monstro, se escondendo sob a fachada do médico.
Quando ele descobre a poção que faz com que seu lado oculto se manifeste fisicamente com uma fisionomia diferente da sua, ele percebe a oportunidade de desfrutar dos prazeres indignos que desejava sem jamais ser pego.
Por essa razão, Jekyll acaba por tomar a poção propositalmente, mesmo criando estruturas e mecanismos para encobrir sua identidade dupla.
Pode parecer fantasioso na obra, mas o doutor é aqui a imagem da esmagadora maioria de nós, que acha que pode alcançar as alegrias de uma vida virtuosa e santa, sem abrir mão dos prazeres e pecados que sabemos que nos fazem mal.
No entanto, assim como do bom doutor, acabamos nos deparando com uma verdade inevitável.
“Era a mão de Edward Hyde!”

Em uma manhã comum, após ter se deitado com Henry Jekyll, o doutor acorda para descobrir que está lentamente se transformando em Edward Hyde.
Porque é isso que acontece quando permitimos a liberdade de nossa parte “monstruosa”.
É importante lembrar que, devido à cisão de nossa natureza, ela é nossa parte mais forte, colocada sob controle a muito custo.
Quando deixamos ela sair, ela começa a assumir o controle.
O que devemos entender é que essa parte não fica oculta por estar “oprimida” por pressão social. Ela está presa porque é desordenada mesmo!
Uma verdade antiga é essa: aquilo que não queremos que ninguém saiba que fazemos é algo que não deveríamos fazer de forma alguma.
Mas essa vida dupla está fadada ao fim. Em algum momento, o monstro sempre sai da jaula. As máscaras caem e, geralmente, levam tudo o que é bom e honesto com elas.
E as coisas tendem a ficar cada vez piores.
“Num transporte de regozijo, espanquei o corpo indefeso, deliciando-me em cada pancada”

Em determinado momento, Mr. Hyde perde totalmente o controle e acaba cometendo um erro irremediável: ele mata outro homem em um arroubo de raiva e sadismo demoníacos.
Além do horror próprio ao ato, esse erro ainda vai custar caro para o Dr. Jekyll, posto que seu alter ego foi flagrado e, agora, ele não consegue mais manter sua forma natural.
Dr, Jekyll, junto com Mr. Hyde, tem como único destino a forca.
Sua vida acabada, sua reputação arruinada, suas amizades desfeitas. Os prazeres perversos que Jekyll se permitiu viver sob a máscara de Hyde cobraram seu preço último e ele, por fim, escolhe a covarde saída do suicídio.
A história de Dr. Jekyll é assustadora por ser terrivelmente verossímil.
Quantos jovens já não tiveram o futuro destroçado por vícios que pareciam tão inofensivos a princípio? Quantos pais de família já não arruinaram seus casamentos por quedas que pareciam tão pequenas no começo?
Embora ficcional, a história de Hyde mostra o verdadeiro final de uma vida de vícios: medo, ostracismo, desespero.
É preciso conter o monstro antes que ele nos devore.
Dr. Jekyll contra Dr. Freud

Um último comentário sobre a verdade contida na obra de Stevenson é que ela é uma cura interessante para a mentira espalhada por diversas fontes dentro da cultura atual, não sendo a menor delas as psicologias de base freudiana.
Essa mentira é a que tenta nos convencer que o monstro, na verdade, é bom!
Para essas linhas psicológicas, os impulsos sinistros que guardamos por serem considerados “tabus” ou socialmente inconvenientes são justamente os que deveríamos liberar para sermos mentalmente sãos.
De acordo com elas, as “opressões” da sociedade, do “superego”, são arbitrárias e irracionais na maior parte dos casos, causando as famosas “neuroses”.
Ou seja, você não deixa de trair a sua esposa porque isso romperia o pacto de fidelidade do casamento, mas porque a sociedade te oprime a ser monogâmico.
Você não deixa de usar todas as substâncias possíveis porque isso vai destruir sua saúde, mas porque a sociedade patriarcal te oprime a uma aparência de sobriedade.
Você não deixa de expressar cada impulso que lhe acomete, por mais violento que seja, para não ferir aqueles a seu redor, mas porque é oprimido a permanecer calado.
Não é necessário dizer que tudo isso é um monte de tolices.
A história de Dr. Jekyll nos mostra que colocamos nossos monstros em xeque porque eles têm, de fato, o potencial para causar danos irremediáveis, a nós e aos outros.
O homem verdadeiramente maduro não o faz por ser coagido, mas livremente, por entender o que é o melhor para si mesmo e ter força o suficiente para optar por isso.
Fomos ludibriados a confundir fraqueza moral com liberdade, descontrole com autenticidade e maldade com direito.
O resultado dessa cultura (como a própria psicologia freudiana prevê, aliás) só pode ser o mesmo que o do pobre Dr. Jekyll.
“O Salário do pecado é a morte.” Rm 6, 23
Escrito por Prof. João Gabriel